“Ao deixarmos com orgulho nossos lares,

nós dizemos com fé e emoção

a Marinha sempre forte pelos mares

é o desejo de nossos corações”

Esta é a estrofe inicial do Hino do Colégio Naval , cujo primeiro verso não poderia ter sido melhor escolhido. Aos 15 anos de idade, eu deixava a casa dos meus pais para conviver, em internato, com centenas de outros jovens que partilhavam do mesmo objetivo: ser oficial da Marinha do Brasil. Sonhara com este momento desde os meus 7 anos, quando comecei a frequentar navios nos finais de semana em que meu pai se encontrava de serviço. Nos meus sonhos, projetava o meu futuro como almirante. A perspectiva de seguir os passos de meu pai, de lograr ascensão social como oficial e de algum dia poder estar no posto mais alto daquela instituição era animadora.

Retratei com mais detalhes o contexto que me levou a sonhar com esta carreira e ingressar na Marinha no vídeo abaixo do canal Programação Dinâmica:


Além de ser um estabelecimento de ensino de nível médio, o Colégio Naval (CN) é responsável pelo “preparo intelectual, físico, psicológico, moral e militar-naval” dos alunos, a fim de “selecioná-los para o ingresso na Escola Naval”. Jovens de todo o Brasil ingressam anualmente após aprovação em concurso público para, então, serem testados em todas essas dimensões por três anos.

A experiência como aluno do Colégio Naval

A rotina do Colégio Naval (CN) é completamente preenchida, da alvorada, às 6:00h, ao silêncio às 22:00h, com 1 hora de recreação prevista antes do jantar. Eu até achava bom poder acordar às seis, pois nos anos anteriores me levantava às quatro. Cumprir a rotina, apesar de ser cansativo, não era a maior dificuldade ao meu ver.

No primeiro ano, é preciso aprender a conviver com as diferenças inerentes à reunião de jovens com educações muito diferentes e provenientes das mais variadas regiões do país. Canoas, Peruíbe, Corumbá, Ribeirão Pires são apenas alguns exemplos fora das capitais. É preciso colaborar e formar laços não só para se adequar a um modelo de exigência física, intelectual e psicológica alto, mas principalmente para superar os infortúnios gerados pelos jovens dos anos superiores, que estão aprendendo a lidar com o poder que têm. Para um primeiranista adentrar um local com a presença de um terceiranista, é preciso lhe solicitar permissão e sempre se referir a ele como senhor.

“Sim senhor! Não senhor!"

Neste período, apesar de ter conquistado um objetivo desejado durante muitos anos, eu não sabia dizer se estava feliz ou não. Eu gostava de ser da Marinha, de vestir aquela farda, iniciava minha autonomia financeira e tinha oportunidades de fazer coisas que jamais teria feito fora dali; contudo, o desconforto de ter que regressar a Angra aos domingos e o estresse diário das provações oficiais e extraoficiais não faziam parte do meu sonho. Aprendi que os maiores desafios do ambiente profissional geralmente estão fora do job description, estão em fatores não escritos e que nem sempre são institucionais, mas fazem parte de estar em organizações formadas por seres humanos. O dia a dia real do CN transforma os anos ali passados em uma jornada de amadurecimento que demanda resiliência, controle emocional, flexibilidade, ação sob pressão, coragem moral e tantas outras habilidades que o mercado valoriza hoje como soft-skills. A vida era diferente do que eu imaginava, mas o primeiranista não tem muito tempo para refletir — felizmente.


Cada ano assume um papel distinto dentro do Corpo de Alunos (CA), com seus próprios desafios a vencer e oportunidades a agarrar. No segundo ano, sem o foco dos olhos da turma mais antiga, há uma certa sensação de liberdade, porém crescem os níveis de exigência dos aspectos formais. Maiores responsabilidades, provas mais difíceis, erros menos tolerados. Eu tentava seguir as regras, mas sofria com as punições coletivas: um fez, todos pagam. Uma punição comum era aumentar a quantidade de postos de serviço, fazendo com que mais alunos fossem necessários por dia e, consequentemente, diminuindo o intervalo de folga para todo mundo. Mesmo assim, lembro de num determinado momento do ano, o imediato do CA ter reunido a minha turma para mais uma repreensão e, transtornado, afirmado que havíamos esgotado sua “caixinha de maldades”. Achei a cena um pouco exagerada.

No terceiro ano, no topo da hierarquia dos alunos, há uma maior cobrança nos aspectos de liderança, de dar exemplo ao primeiro ano e ajudar o Comando a conduzir as diversas atividades. Estudar sobre liderança, aliás, é um dos grandes diferenciais do curso e ocorre na teoria e na prática, pois somos expostos — voluntariamente ou não — a diferentes situações para exercita-la. Por ser o sexto colocado da turma, fui agraciado como oficial-aluno comandante da 1ª Companhia (CIA), o que implicava tarefas adicionais junto ao oficial que comandava a CIA, mas também alguns benefícios. Uma das tarefas, à época, era participar do grupo responsável por receber a nova turma antes do início do ano letivo e auxiliar os oficiais nas instruções durante as “semanas de adaptação”.

Apesar das peculiaridades de cada ano, há comportamentos valiosos para o ambiente profissional que eram cobrados o tempo todo, de modo a serem interiorizados. Cumprir prazos e horários, zelar pela apresentação pessoal, assumir responsabilidade, além de saber se comunicar em diversas ocasiões: com os superiores, com os pares, com os subordinados, verbalmente ou por escrito. Aliás, descobri que é ainda mais importante saber o momento de falar e o de não falar. Essas exigências comportamentais se estendiam para fora do quartel, pois carregávamos a responsabilidade de representar uma instituição tradicional e cuidar de sua imagem. Hoje em dia, com o avanço das redes sociais, a percepção de que o comportamento dos funcionários pode afetar a imagem da empresa passou a ser uma ideia comum e não é raro vermos casos de pessoas que são demitidas pela exposição de algo inadequado.

Se por um lado havia uma forte cobrança e um peso por fazer parte de tudo aquilo, por outro éramos estimulados a sentir orgulho de vestir o “branco de Marinha” e exaltados internamente como a “nata da sociedade”. Esta é uma das coisas mais curiosas que pude refletir depois daquele período, pois me deixou o legado mais importante para o meu progresso: minha autoconfiança. No CN, éramos convencidos de que estávamos ali simplesmente porque queríamos, pois seríamos capazes de ir para qualquer outro lugar. Eu era tão autoconfiante que fui capaz de manter o foco e a motivação nos estudos para ser aprovado no Instituto Militar de Engenharia (IME) de dentro do CN, mesmo com todo o tipo de gente dizendo que era impossível:

“Você até é inteligente, cara, mas com essa rotina aqui não dá, é preciso sair para se dedicar a um cursinho”.

No IME, tive uma experiência muito diferente com relação à autoconfiança e percebi o quanto era importante aquele estímulo e motivação que havia no CN. Embora o concurso do IME seja muitíssimo difícil, passando a percepção — errada — de que “só passa gênio”, a autoestima do aluno do IME é destruída nos anos iniciais do instituto. No CN, eu pensava que se pudesse “sobreviver” àqueles anos e me formar, realmente poderia fazer qualquer coisa. Afinal, o que poderia ser mais difícil? Os anos seguintes trariam a resposta…

Depois do sonho

Embora eu não tenha prosseguido na carreira, o CN me proporcionou a vivência de um ambiente profissional muito cedo e de forma bem intensiva, uma experiência que me permitiu desenvolver atributos essenciais para tudo o que eu viria a fazer depois. Aprendi muito sobre mim mesmo e, como parte do processo de amadurecimento, passei a ter uma visão diferente sobre o que eu devia considerar importante. De repente, conflitos comuns entre pais e filhos na adolescência não faziam mais sentido na minha realidade e outras preocupações ganhavam espaço na minha mente. Os aprendizados de vida, no entanto, são contínuos e a despeito das experiências passadas, estamos sempre evoluindo.

Hoje, como coordenador de pós-graduação no Instituto Infnet, preciso conduzir entrevistas com os candidatos ao curso antes de se matricularem e, às vezes, percebo uma certa estranheza com a minha pouca idade. Nesses momentos, fico feliz de ter tido a oportunidade de estar em um ambiente profissional muito cedo e de, literalmente, viver dentro dele.


Publicado originalmente no Linkedin em 24 de junho de 2019